domingo, 6 de novembro de 2011

durmo na PRAÇA

Trabalhador tem casa mas prefere dormir na Praça da Liberdade


Tenho casa para morar. Estou aqui por opção, é uma experiência, e isso não dá a ninguém o direito de me contestar ou de me expor à sociedade (Jorge Gontijo/EM.D.A/Press)
Tenho casa para morar. Estou aqui por opção, é uma experiência, e isso não dá a ninguém o direito de me contestar ou de me expor à sociedade


Ele acorda sempre antes das 7h. De terno preto, risca de giz, camisa de tom claro, azulada, gravata preta de bolinhas brancas. Entre as 7h e as 7h30, põe os olhos cansados sobre os jornais. Propõe-se à elegância e sugere uma aparência culta. Dorme na praça, mas não pertence ao segmento de moradores de rua. Não é mendigo nem alcoólatra. Louco? Também não. É um trabalhador. Às 8h, já está caminho da lida diária. É um homem livre, a quem vamos chamar de mister Liberdade.

Privacidade é um direito inalienável. Essa tese ele defende diante de quem ousa ultrapassar seus limites. Pode parecer contraditório quem escolheu um banco da Praça da Liberdade para passar a noite invocar privacidade. Mas não há contradição. “Tenho casa para morar. Estou aqui por opção, é uma experiência, e isso não dá a ninguém o direito de me contestar ou de me expor à sociedade.” Conversar com esse personagem é uma viagem à intrincada teia da natureza humana.

Mister Liberdade não passa as noites de terno e gravata na Praça da Liberdade para afrontar normas sociais ou sensibilizar quem quer que seja. “Quero conhecer o outro lado do preconceito.” É discreto, silencioso. Arredio? Não. Tem amigos. Sua história e o trabalho renderam certa popularidade no meio jurídico. Caminhantes matinais o reconhecem na praça e trocam cumprimentos. Até recebe visitas, desde que não seja uma aproximação ou abordagem tendenciosa.

“Sente-se, a casa é sua”, diz apontando o lado esquerdo do banco da praça. Ele ainda não calçou os sapatos. Levanta os olhos do jornal, tira os óculos de aros escuros e a fala de onde e como veio para BH. Nasceu em 1949, a 100 quilômetros da capital. De carona, numa jardineira da Viação Santa Maria, deixou para trás os irmãos e irmãs, depois da morte do pai. Não tinha mais que 9 anos. Desembarcou na cidade grande, então com cerca de 600 mil moradores, e perambulou, perambulou até parar diante de um funcionário público, do Judiciário, que o adorou e o criou com uma única condição: seria livre para fazer o que quisesse, menos o que pudesse ofender reputações.

“Tive liberdade sim. Fui um gandaieiro. Estudo? Completei o primário. Mas fiz um curso de inglês oferecido aos brasileiros pelo New York Times, na década de 1970, em uma sala da Galeria do Ouvidor. Aprendi também técnicas de artes marciais com o professor coreano Chan Chao Ling, o que me ajudou a livrar de uma ameaça de paralisia, depois de um acidente com motocicleta. O jornal publicou que estava pilotando bêbado. E estava.”

E essa história da ameaça de paralisia? “Fui levado para a Santa Casa como muitos ferimentos e uma hemorragia cervical. Isso foi em 22 de dezembro de 1989. O médico iria me operar no dia seguinte e adiantou que eu ficaria paralítico. Eu disse a ele que me suicidaria se isso ocorresse. À noite, na cama, senti a perna direita paralisada. Comecei a procurar movimento do lado esquerdo. Achei e comecei a exercitá-lo. O lado direito começou a reagir e consegui ficar de pé, apoiado na cama. Foi uma luta até as 6h, quando comecei a andar devagar. Isso deixou os médicos em polvorosa.”

Então, graças aos ensinamentos do mestre Chan Chao Ling você se livrou da cadeira de rodas? “Sim. Os médicos não acreditaram e me submeteram a um interrogatório para descobrir como eu havia feito aquilo.” O que mais o incomoda nesse episódio é a desobediência ao pai adotivo. “Ele insistiu para eu não mexer com motocicleta. Mas não dei ouvidos”.

Criado por funcionário da Justiça, é natural que mister Liberdade tenha devorado leis. Sabe de cor e salteado os artigos do Código de Processo Penal. Conhece o uso e aplicação de cada lei. Tanto que advoga em causa própria ou em defesa de pessoas que considera injustiçadas. Ele não convive com os irmãos e irmãs. Tem uma filha, resultado de um curto relacionamento, criada por uma das irmãs, e já é avô. Mal tem contato com a neta. Não porque assim o deseja, mas o estilo de vida o condena à solidão.

Mister Liberdade quis fazer a experiência de passar a noite na rua no Bairro Barro Preto. Na primeira tentativa, viu coisas que o assustaram. Intimidou-se e foi para a praça. A conversa começa a avançar pela intimidade e pelas relações do homem. Educadamente, mostra as razões pelas quais não ver sua história publicada. “Não posso expor minha vida.” Depois de tanta insistência, concorda, mas sem foto de frente e omissão da maior parte dos fatos. Tudo bem. Bom dia, mister Liberdade.

FONTE: Portal UAI (www.UAI.com.br)

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